1.7.13

Fúria nas ruas

Tenho por hábito ser contra o governo, qualquer que seja o governo. E sou a favor de manifestações, de passeatas e de revolta popular. Mas não participo hoje, porque já participei dessas coisas antes e tenho um certo trauma. Vou tentar contar como foi, embora ainda seja difícil relembrar.
Foi nos anos 70, num protesto contra o aumento do preço da calça boca de sino. Claro que tinha mais coisa por trás, como o atraso no lançamento dos discos dos Bee Gees e a diminuição do número de espelhos nos globos espelhados. A situação chegava a um ponto inaceitável.
Os partidos no poder eram o PDLTBdoB e o PXW. Os dois tinham ideologias completamente opostas: enquanto um gostava de siglas grandes, o outro preferia as mais curtinhas. Jamais haviam chegado a um acordo quanto a isso, embora lá no fundo tivessem interesses em comum (ambos preferiam as calças saint-tropez de boca fina).
Admito que fui um desses vândalos de que se fala hoje: durante a manifestação, cheguei até a ultrapassar a linha amarela na plataforma do metrô. Eu sabia que corria o risco de a polícia me jogar gás lacrimogêneo na cara.
Lembro bem como o gás lacrimogêneo era desagradável. Você fica se sentindo como um desses participantes do Lata Velha do Luciano Huck, chorando descontroladamente.
Mas eu era provocador, insolente. Eu sei que merecia tiro de borracha na cara. Quando pedi para o policial parar com o gás lacrimogêneo, sequer pedi “por favor”. E eu levava não apenas vinagre, mas também aceto balsâmico. Coisa da pesada.
Lembro que em certo momento a coisa fugiu do controle e eu mesmo fiquei preocupado de estar ali no meio. Há limites: algumas pessoas na multidão pararam com os gritos de protesto e começaram a cantar os hits do Clube da Esquina, ignorando os nossos pedidos de moderação.
Foi aí que a polícia veio com tudo: barbantinho cheiroso, spray de pum e sangue do diabo.
No final, colocaram vídeos da Galinha Pintadinha, deixando todos nós hipnotizados. Eles eram opressores sim, mas há de se admitir: era um tempo em que as tropas sabiam melhor como controlar multidões.
Do movimento, no final das contas, apareceu mais um líder político. Ele se candidatou a algum cargo, foi eleito e aí sim veio a decepção: saíram fotos dele no jornal, usando as mais caras calças boca de sino.
Ainda assim, mesmo descrente, acho bonito a população ir às ruas. Mesmo que não tenha carro alegórico e Paulinho da Viola tocando.

19.3.13

Com o pé na pista


Sim, sou um amante da velocidade. Já competi na Fórmula 1. Era uma equipe pequena, bem pequena. Na verdade, ela nem estava registrada no campeonato e eu corria clandestinamente, invadindo a pista discretamente pouco antes da largada.

Competir na Fórmula 1 é uma coisa desgastante. Nas pistas, o pessoal dirige feito louco. Ninguém respeitava quando eu dava a seta, por exemplo.
Também era bastante difícil encostar para dar carona a alguém. Não sei se você sabe, mas nas pistas de Fórmula 1 o transporte público é bastante precário e a carona é a única opção viável para quem não está competindo.

E então, de vez em quando aparecia alguém pedindo carona. Eu tentava encostar, mas era um risco. Os outros carros tiravam fino de mim, quase me acertavam. Levar uma batida na Fórmula 1 era uma coisa que me preocupava muito, porque iria arruinar a pintura dos patrocinadores.

Por isso mesmo, eu dirigia bem devagar e procurava pegar as vias menos movimentadas. Eu sabia um caminho no circuito de Jerez de La Frontera que era mais longo, mas não tinha trânsito nenhum. E ainda passava por uma padaria que tinha um misto quente ótimo.

Abandonei as competições porque o serviço nos boxes estava ficando péssimo. Eu achava aquela pressa toda no atendimento um descaso com os clientes – nem pra passar um paninho no pára-brisa. E, de quebra, eles não ofereciam nenhum programa de fidelidade, promoção de sorteio de carro ou nem mesmo um chaveirinho bonito para eu colocar a chave do meu Fórmula 1.

5.2.13

Dê uma chance para a paz

Quem me conhece pode dizer uma ou outra coisa a meu respeito: sou míope, cada vez mais gordo e sou um pacifista. Já estive, por exemplo, em uma passeata contra a Guerra do Vietnã. Eu levava um cartaz que dizia “Parem a Guerra do Vietnã” – escrevi eu mesmo, com uma caneta grossa vermelha. O protesto não deu certo: só descobrimos depois que a Guerra do Vietnã já havia terminado em 1975. O protesto foi ano passado.

Além do esforço desperdiçado, apanhei durante a passeata. Não de policiais. Foi um grupo de designers bastante irritados com a entreletra do meu cartaz feito à mão. Eles chegaram soltando bombas de gás lacrimogêneo e nos acertando com réguas.

Mas continuo sendo um pacifista. É o que eu sou, um pacifista. Ainda que o timing absolutamente errado, um pacifista.

Não consigo entender o UFC, por exemplo. Eu sei que as pessoas se empolgam, acompanham, torcem, comentam. Mas todas as vezes em que tentei ver uma das lutas, tudo o que eu pensava era:

“Por que esses dois estão se batendo assim? O que um fez para o outro?”

Tenho certeza de que se eles parassem para conversar, descobririam que não há menor necessidade de toda aquela violência. Não há nada que um bom diálogo não possa resolver.

Foi pensando nisso que eu me inscrevi no UFC, uns tempos atrás. Na época, ainda era chamado de Vale Tudo. E se valia tudo, concluí que também valeria tentar chegar a um acordo amigável com o adversário.

O adversário, na ocasião, chamava-se Renatinho Namastê Paz e Luz. Não parecia ser um sujeito durão, mas soube depois que o apelido era irônico. Renatinho Namastê Paz e Luz tinha um metro e setenta, de um ombro ao outro. E já havia colocado sete adversários em uma cadeira de rodas. A mesma cadeira de rodas. Foi bastante desconfortável.

Soou o gongo e eu comecei a luta tentando oferecer chá para Renatinho Namastê Paz e Luz. Ele, por sua vez, acertou-me um tabefe no lado direito da cara. Derramei todo o chá, manchando o short “Bad Boy” que ele estava usando, o que só o deixou mais irritado. Por isso mesmo, apelei: mostrei-lhe uma foto dos meus três filhos pequenos, na tentativa de despertar-lhe um pouco de simpatia e piedade.

Admito que foi golpe sujo. Eu não tenho filhos. Mas Renatinho Namastê Paz e Luz respondeu com outro golpe sujo: um chute no saco. Sei que eu deveria estar usando protetor, mas é que eu havia ido ao banheiro antes da luta e aquele negócio atrapalhava muito. Acabei tirando e esqueci de colocar de volta.

O protetor de saco estava largado em cima da pia do banheiro, enquanto eu me contorcia no chão. Falei a tal da palavra que representa desistência e encerra a luta de imediato:

- AAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIIIIIIIIII, CACETE!!!

O juiz interrompeu o embate, fui direto para o hospital. Mas não me abalei. Continuo um pacifista. Tentei até marcar uma conversa com Renatinho Namastê Paz e Luz, para tentarmos acabar com as nossas diferenças de maneira amigável, mas discordamos seriamente a respeito do lugar do encontro: eu sugeri um bar e ele queria o Octagon. Achei melhor não insistir na discussão e desisti do diálogo. Mandei-lhe um cartão de Natal, no entanto, que voltou completamente estraçalhado pelo Correio. O carteiro tinha um olho roxo e mancava de uma perna, pobre sujeito.

18.1.13

Preciso dizer algo para vocês.

Há um tempo fui atacado por uma crise de soluço. De lá para cá não passou ainda. Continuo soluçando descontroladamente. Os soluços começaram a substituir os pontos finais nas minhas falas.

Aparentemente, todas as curas para o soluço consistem em fazer papel de ridículo de diferentes maneiras: beber água de cabeça para baixo, levar um susto, fazer a coreografia de Macarena de trás para frente, pegar fila, colocar um saco plástico na cabeça e ir assim à padaria mais próxima pedir um sonho.

Todo mundo sempre tem uma cura para o soluço. E nunca é algo que você gostaria de fazer em público.

 Ainda assim, tentei de tudo. Nada funcionou. Esse soluço é bastante grave. Não é daqueles que curam fácil.

Não seria um problema tão grave se eu não tivesse sido convidado para dar uma palestra sobre as possíveis saídas para a crise na Europa.

Como era de se esperar, a palestra foi um fracasso. Em parte, claro, porque eu não sei quais são as possíveis saídas e improvisei o conteúdo na hora, recitando pedaços de letras de música e misturando com os poucos textos marxistas de que lembro que estudei em um passado recente na faculdade.

Mas o soluço também não ajudou em nada. Basta soluçar no meio de uma frase para que ela perca completamente a credibilidade. Ninguém levou em consideração nada do que eu disse – exceto um sujeito que pareceu tomar nota quando eu disse:

- A história de toda a sociedade até hoje nada mais é que a história da luta entre as classes. Eu sou o homem-ovo, eu sou a morsa. Hic.

Percebi que meu discurso não havia atingido a maioria da plateia quando abriram o microfone para perguntas, estimulando o debate, e tudo que o pessoal fez foi dar dicas para curar o meu soluço.