19.9.12

Música e Dança

Devo ter falado do assunto aqui em alguma outra ocasião. Mas quem já me viu em uma pista de dança sabe bem o que é sacudir o esqueleto com classe: e é absolutamente o oposto do que eu faço.

Sim, eu cheguei a fazer uns dois ou três meses de aula com o Jaime Arôxa. Aulas que foram interrompidas de modo trágico, tentando aprender o bolero. Não gosto de lembrar disso. Causei um terrível acidente quando em vez de “dois pra lá, dois pra cá”, eu fiz “três pra noroeste, cinco pra baixo”. Errei o caminho. Esses cursos deveriam ter um GPS no material didático.

Depois disso, resolvi tentar o que se chama por aí de “street dance” ou, no meu caso, “possível AVC”. Eu ia para festas Soul e tentava botar pra quebrar nas pistas. Tinha alguns passos na manga, como o “elevador parado no quinto andar”, a “caminhada sobre lava incandescente” e o “arroz a granel”, que eu só usava quando tocavam O Guarani – coisa rara em festa Soul. Quando era uma música lenta, daquelas pra dançar de rosto colado, eu tentava a Umbigada, o que podia ser, admito, bem perigoso.

Lembro quando fui chamado para um concurso de B-Boy, um daqueles onde os competidores ficam disputando quem dança melhor, com alguns malabarismos. Uns se apoiavam com a cabeça no chão e rodavam. Outros giravam loucamente como rãs no liquidificador. Eu não. Eu fiz a incrível troca de joelhos. Sabe como é? É para causar uma ilusão de ótica com o rápido movimento dos joelhos se encostando e se afastando seguidas vezes, como que levados pelas mãos. Foi um terrível erro. Fiz com tamanha intensidade que acabei trocando os joelhos de verdade.

Os dois joelhos são muito parecidos e a princípio não seria um problema. Mas atrapalhou muito os meus movimentos. Quando o pé direito avançava, o joelho direito – que estava no lado esquerdo – tentava avançar também, levando a perna esquerda inteira junto. Parece que é por isso que eu não conseguia vencer um torneio de bicicross – me enrolo com os pedais.

Passadas algumas sessões de fisioterapia, voltei a normal. Os joelhos começaram a aceitar seus papéis trocados e eu pude voltar às pistas de dança, com o passo “Xícara-Bule-Escrava Anastácia-São Sebastião”, uma dança antiga, que me foi ensinada por um sábio e vem passando de geração em geração desde o tempo dos grandes bailes do império.

O “Xícara-Bule-Escrava Anastácia-São Sebastião” é um passo versátil. Pode ser usado em músicas de diferentes estilos, como “Signed, Sealed, Delivered, I’m Yours”, “They Can’t Take That Away From Me”, “I Call Your Name” ou o jingle do Eymael.

Hoje, eu fico apenas nesse único passo. Não arrisco mais. Quando tentei fazer o moonwalk, em uma festa de casamento anos atrás, fiz rápido demais e atropelei uma das madrinhas.

13.9.12

O que é necessário

Para se envolver com ruiva é preciso haver coração de sobejo.

Não que as ruivas não se amem facilmente. Na verdade, é comum que sejam amadas por muitos. Basta às vezes um só olhar para que isso aconteça.

É que, uma vez acesa a chama, nunca será pequena; será sempre fogo denso, impiedoso, inquisidor.

Portanto, para se relacionar com uma ruiva é preciso saber queimar. É preciso brincar sem medo com fogo. E é preciso também respeitá-lo – o fogo que nasce no crânio da ruiva feito cabelo, que lhe afogueia as faces. Um fogo que, quando afrontado, em lugar de aquecer, incinera.

Judas tinha cabelos vermelhos, diz-se; como Esaú também os tinha, e antes dele, Caim. Waterhouse pintou Lamia, lenda de sedução, com cabelos vermelhos; as madeixas com que a Vênus de Boticcelli cobre languidamente o sexo não são de outra cor que não a do fogo. Cor que é certamente um sinal de perigo. Sinal claro de divindade.

Para flertar uma ruiva é preciso fitá-la intensamente nos olhos – sejam azuis do mar, verdes dos fiordes ou, mais raramente, castanhos como a terra que os consumirá – e provar-lhe a ausência do medo. Conquistá-la no olhar primeiramente, e só depois no toque – pois tu certamente quererás tocar a pele muito, muito clara, de uma claridade quase ofuscante, mesmo sob o sol maldoso dos trópicos. Quererás isso como teus pulmões querem o ar. Eu sei porque já quis.

Mas, antes disso, terás de provocar seu sorriso, e embora sorrisos sejam fáceis na boca-morango da ruiva, não penses que serão todos teus. Alguns serão da tua tolice, da tua presunção, e estes ela te dará sem cerimônia, sem promessa, sem futuro. Serão paina ao vento, macios e inúteis. O sorriso que queres tomar da ruiva é o do fascínio. Pois ela, que fascina, não quer outra coisa que não ser fascinada. Ela é chama, e para incendiar deve ser alimentada com palavras hábeis, coração honesto, virilidade sem disfarces. É preciso atrevimento, mas nunca certeza; ela é adorada por muitos, e pode escolher a quem amar.

Então, quando obtiveres esse sorriso, estarás pronto para amar uma ruiva.

Para isso, começa sempre no beijo, mas que ele não seja sempre nos lábios-cereja, porque o óbvio a mortifica e ela deseja a surpresa, o ato que lhe faça justiça. Que teu beijo, pois, seja às vezes na superfície interna do pulso, onde veias de sangue azul chamam o olhar e provam que a pele é sensível; às vezes, no canto esquecido abaixo da orelha, que não é nem pescoço nem face, nem amor nem desejo – é algo entre mundos, e estar entre mundos é da natureza da mulher de cabelos carmesim, cobre ou dourado-fogo. Fica, pois, entre os mundos dela, como entre os lábios, entre os braços, entre os seios e afinal entre as coxas. Sem pressa, porém; pois para amar uma ruiva é preciso queimar como boa madeira no inverno: por toda uma noite, aquecendo a casa, crepitando baixo, estremecendo sempre até as cinzas.

Para merecer uma ruiva é necessário admirar-lhe cada sarda, da testa ao ventre, saboreando-as como raspas de canela que temperam a pele-leite.

É preciso consumir-se nos cabelos-labareda.

É preciso afogar-se no sexo, rubro jardim sem espinhos, e santificar seu aspecto perpetuamente virginal, a despeito do pecado, que ela te ensinará a adorar, se já não souberes.

Para envolver-se com uma ruiva – e disso sei por já ter admirado muitas – é preciso arder com graça.

É preciso amar um pouco o próprio inferno.

Por isso, ruiva, se é que deves mesmo me ferir, sê breve: tenho pressa do paraíso.

3.9.12

Fácil de lembrar

Algumas músicas antigas me trazem lembranças sempre que as ouço. Algumas boas, outras ruins. Mas não que isso faça diferença. O que acontece é que elas me trazem lembranças.

Puttin’ On The Ritz, de Irving Berlin, é uma delas. Sempre que toca essa música, eu lembro dos meus tempos áureos em Wall Street. Ganhei bastante dinheiro lá investindo em uma barraquinha de cachorro quente que vendia bem para o pessoal dos bancos. Mas então a ganância falou mais alto e eu comecei a especular: colocava mais mostarda que ketchup, trocava a salsicha comum por uma de frango e exagerava no curry. Perdi tudo para Rockefeller com sua barraquinha de pipoca, inteligentemente batizada de Pipockefeller. O sujeito era bom de negócios mesmo.

Outra música que me traz lembranças é A Fine Romance, na voz do Louis Armstrong. Ela me lembra a fórmula de Bhaskara. Eu usava a melodia e troquei a letra para ajudar a decorar. Até hoje não consigo cantar a letra original, mas me emociona do mesmo jeito.

In a Sentimental Mood, na versão do Duke Ellington com o Coltrane, é uma que me deixa melancólico. Ela me faz recordar de tempos difíceis, nas minas de Wigan Pier, esquecido na solidão daquelas catacumbas. E isso é bem estranho, porque eu nunca estive nas minas de Wigan Pier.

E então, quando os olhos começam a marejar, mudo para Feeling Good, da Nina Simone. Essa lembra de quando eu velejei pelas Granadinas, ao sabor do vento e com o sol batendo forte na cara. Bons tempos. Lembro dessa época não pela letra ou pelo espírito engrandecedor da melodia, mas porque na ocasião eu acabei acertando de proa um outro veleiro chamado Feeling Good. Foi bem irônico ver o desespero dos tripulantes contrastando com o nome otimista da embarcação, escrito em letras douradas.